domingo, dezembro 19, 2021

UM CONTO DE NATAL NA VICÊNCIA DE OUTRORA - TEXTO: SAMUEL CAZUMBÁ

Desenho: José Ednilson (Nilsinho)
Era uma vez uma cidade. Cidade pequena. Poucas casas, poucas ruas, comércio pequeno. Não tinha nem supermercado. Tinha armazém, venda e barraca. Carros? Muito poucos. As pessoas ainda andavam de cavalo, burro ou jumento. Aqui e acolá se via uma Rural, uma Brasília, um Opala, um Chevete e caminhões, muitos caminhões. Apesar da cidade ser pequena tinha duas indústrias, duas usinas de açúcar; a cidade era rodeada de cana-de-açúcar, o ouro verde da região.
Quando dezembro chegava, as pessoas começavam a se preparar para o Natal. Muitos trabalhadores já haviam recebido o dinheiro do PIS e aguardavam pegar o décimo terceiro para comprar as roupas de festa. Tinha muitas costureiras. As mães, tias, avós, iam na loja de tecido e compravam cortes de “fazenda”: terbrim, tergal, cambraia, linho. Todos deveriam estar bonitos nas últimas semanas do ano.
Não é de hoje que tem esse corre-corre de pessoas nesse período do ano. Naquele tempo, nessa cidade, as pessoas também corriam. Mas corriam para a padaria de Seu Biu Machado para assar o bolo do natal. Corriam para a Casa Ribeiro, para comprar os panos que iriam vestir a família toda. Corriam para a casa de Dona Neta para garantir a costura da roupa nova. Corriam para loja de Seu Pedrosa para comprar adereços de natal. As mulheres corriam para Liquinha Cabeleireira e os homens para Seu Tomé Barbeiro, para ficarem nos trinques. Corriam para ver o Pastoril na frente da Matriz e torcer pelo cordão azul ou encarnado. Corriam para o baile, ou no Mercado Público, ou no Clube das Morenas, ou no clube Municipal para dançar coladinhas ao som de Dilentantes, Painel 8 e um pouquinho mais recente da Banda Voo Livre. As pessoas corriam, mas era uma carreira meio que devagar... parece que o tempo passava menos depressa.
Havia um senhor chamado Luiz Gomes Maranhão, Seu Lula, senhor de engenho e prefeito, Major Lula. Era um homem rico. Tinha engenhos, fazendas e uma frota de caminhões. Na véspera de natal ele atravessava um trator com carroça e tudo e interrompia o trânsito na rua principal. Motivo: Festa de Natal. O parque estava na rua. Seis horas da noite o povo começava a chegar. As ruas se enfeitavam de gente. As pessoas se enfeitavam e traziam as crianças para correrem no patinho, na barcaça ou no carrossel. Devoto de Nossa Senhora, Seu Lula Maranhão, praticamente patrocinava a procissão motorizada do dia 25 de dezembro. Mandava toda a sua frota de caminhões acompanhar o cortejo desde o engenho Jundiá. Enquanto ele estava vivo, todos os anos a procissão passou pelo engenho Vicencinha.
Enfim a festa. Num dia como hoje, a cidade estava iluminada. Não com essas coisas de led e pisca-piscas modernos, bastavam algumas gambiarras com lâmpadas amarelas para complementar a iluminação pública. A matutada vinha da zona rural e muitos deles já ficavam no mamulengo. As crianças se entupiam de pipoca no carrinho de Seu Aldemar da Viola, com o algodão doce de Seu Joaquim de Moura e se lambuzavam com os picolés da Sorveteria Itacolomy. Os casais apaixonados deliravam de amor ouvindo Fernando Mendes no alto-falante rouco da Roda Gigante enquanto melavam os beiços na incomparável Maçã do Amor.
Depois de “correr” no parque, crianças e adultos voltavam para casa. Naquele tempo não tinha Peru, não tinha ceia, não tinha frango especiale, nem pernil, nem chester. A maior felicidade do mundo era voltar da festa com um pão francês bem grande debaixo do braço, um confeito de festa em uma mão e uma bola em formato de pato na outra.
O tempo passou, a cidade cresceu e se desenvolveu. Muita coisa mudou. As festas continuaram com cada coisa em seu tempo. As crianças de outrora já estão ficaram adultas e caminham para a velhice.
No decorrer dessa caminhada, exatamente em 2019, não somente esta cidade, mas o mundo inteiro parou. Uma Pandemia alterou o eixo da Terra. Um vírus mortal devastou famílias, interrompeu sonhos, alarmou o planeta. A COVID-19 dividiu o mundo em antes e depois.
Mas nós... os que ficamos vivos, estamos aqui para contar a história. Sobrevivemos a essa hecatombe sanitária. Fomos vitoriosos, enquanto muitos perderam tudo, inclusive a própria vida.
Então é hora de celebrar. Afinal Natal quer dizer nascimento e fazemos parte de um renascimento. Deus está nos dando uma nova oportunidade para viver, para amar, para sonhar. Sonhar com um mundo melhor, não apenas para nós, mas para nosso próximo, para nossa família, para as futuras gerações.
Como diz o artista: “É hora de estender as mãos em prol da multidão que está do outro lado. É hora de reconhecer, pois Deus vai requerer de quem está parado; é hora de sair ao campo e ver o mundo em pranto num abismo escuro. Por que não começar agora? Já que estamos na última hora!”
Quem viveu tudo isso está envelhecendo. Outros se foram. Uns levados pela vida, outros pela “indesejada das gentes”.

E como diz a história: só ficaram recordações... e tudo mais...